Amazon e Uber redefinem as relações trabalhistas no século 21

Os especialistas já falam em uma revolução industrial 4.0 que está mudando o paradigma das relações trabalhistas no mundo todo. O último anúncio da Amazon vem confirmar que nos encontramos diante de um novo contexto de trabalho em que as regras vêm marcadas pelo uso da tecnologia. A empresa confirmou que colocará em funcionamento na Espanha seu programa “Amazon Flex”, que já funciona há alguns meses nos EUA e que ficou conhecido popularmente como o “Uber das mensagens”. A iniciativa consiste em oferecer aos usuários a possibilidade de se converterem em distribuidores dos produtos vendidos na plataforma em troca de um pagamento de 28 euros por blocos de duas horas de trabalho. Na América do Norte, por exemplo, quem acessar o serviço ganha entre 18 e 25 dólares por hora, considerando-se que ele foi pensado como atividade de tempo parcial.

“A economia digital é disruptiva por si mesma e é uma realidade tão atraente que não se pode detê-la; ela se impõe. O novo modelo da Amazon se encaixa nessa chamada economia colaborativa, que substitui o modelo tradicional de ativos próprios por plataformas digitais”, conforme explica Rafael Chelala, advogado e professor da Escola de Negócios Deusto. Contudo, há especialistas que vão mais além e falam, inclusive, em “plataformização das relações trabalhistas”. Um novo termo que emprega Raúl Rojas, sócio do escritório Ecija, e que define o uso dos canais digitais como “vínculo entre o trabalhador que presta serviços e o destinatário final deles sob demanda”. Ele salienta que “esses novos modelos de negócios de caráter disruptivo são próprios do uso generalizado das novas tecnologias e do processo contínuo de transformação digital que estamos vivendo em todos os níveis da empresa e na sociedade em geral, dando lugar ao que muitos autores chamaram de indústria 4.0“. Por isso, para ele o caso da Amazon é só um exemplo a mais que confirma uma tendência crescente, com exemplos como o Uber e o Deliveroo, entre outras muitas plataformas colaborativas de alcance mundial.

Novo cenário

Todos os especialistas dizem que estamos no início de um novo cenário econômico e, portanto, de um novo contexto trabalhista. Contudo, qual o alcance real dessa mudança de paradigma? Para Chelala, da Deusto, a maior parte desses modelos “se afastam da relação trabalhista tradicional”. Seu ponto forte é a flexibilidade, permitindo que as pessoas “conciliem e escolham a hora em que querem trabalhar”. É o que pensa também Ricardo Pérez, CEO da Innovation Coach e professor de inovação digital e sistemas de informação da Escola de Negócios IE. Para ele, “estamos num momento decisivo para a definição desse tipo de economia que os americanos chamam de gig economy: o indivíduo pula de um trabalho para o outro e não tem relação contínua com uma empresa única”. Ele acrescenta ainda que esse tipo de solução pode ser muito positiva em um contexto de profissionais formados com muitas alternativas de trabalho de valor agregado e bons pagamentos, “em que se pode trabalhar para o melhor empregador e se aliar a quem consideram mais conveniente”. Contudo, chama a atenção para os riscos: “O ponto negativo disso é que se pensarmos no outro extremo (empregos de pouca qualificação), veremos como esse tipo de relação pode se prestar a abusos e ao excesso de poder das plataformas no que diz respeito aos provedores individuais.”

É nesse ponto que surgem e se encadeiam várias interrogações: trata-se de um emprego em que o profissional é seu próprio chefe? Então, trata-se de um trabalhador por conta própria ou por conta de outros? E quem é o responsável pela atividade diante do consumidor? Para Rafael Chelala, é preciso levar em conta que se parte da “figura de um trabalhador autônomo”, situação que já se acha regulada nos ordenamentos jurídicos, e o mesmo se aplica ao papel das empresas ou plataformas, que “imporão requisitos no âmbito do marco legal existente”. Contudo, Raúl Rojas é mais cético e diz que “o direito sempre caminha a reboque da realidade, principalmente quando falamos de adaptação a mudanças tão profundas que a disrupção tecnológica está provocando nas relações trabalhistas, transformando inclusive o conceito clássico de trabalhador independente”. Tudo isso sem falar dos conflitos legais com se deparam empresas como o Uber ou a Deliveroo em vários países, entre eles a Espanha, Reino Unido, EUA e também países da América Latina.

Raúl Rojas, do escritório de advogados Ecija, lembra que há países que já começaram a levar em conta esses aspectos em sua legislação, embora “timidamente”. Ele se refere, por exemplo, à França, que em sua última reforma trabalhista, regulou o direito à desconexão digital. Contudo, para ele, “estamos apenas no alvorecer da necessidade de grandes reformas normativas integrais que regulem o marco legal do trabalho nos novos contextos digitais”. Para o professor da Escola de Negócios IE, será fundamental esperar pelas sentenças judiciais dos processos em tramitação: “Nos EUA, estamos num momento crucial à espera das decisões na Califórnia e em Nova York sobre o status dos motoristas do Uber: se forem considerados empregados, pode ser que tudo mude para essas empresas.” Além disso, pode haver, segundo especialistas, uma retração na revolução trabalhista digital. “Embora seja bom dar proteção a essas novas formas de trabalho, é importante não esquecer a igualdade das partes: não é o mesmo modelo econômico colaborativo em que as partes são iguais, em que uma plataforma por meio da tecnologia dita as regras que devem ser seguidas pelos seus provedores a todo momento, o preço que devem fixar. A isso, chamo de empregador”, disse Ricardo Pérez.

Empresas e trabalhadores do século 21

Independentemente do que decidam os tribunais, Raúl Rojas acha que “o marco legal não regula suficientemente as novas figuras do trabalhador em contextos digitais”. Como exemplo disso, na Espanha existe apenas um preceito jurídico que regula a figura do trabalho remoto, “e o faz de maneira muito generalista”, ao passo que não há referência a jornadas flexíveis quando se trata de uma demanda que muda muito, com picos importantes de atividade, ou a temas como o direito dos empregados à desconexão digital.

Contudo, além das reformas legislativas a serem adotadas pelos governos, os especialistas concordam que os ambientes de trabalho estão mudando rapidamente. “Antes, os escritórios impunham um horário porque os meios de trabalho estavam ali. Isso mudou e cada vez mais há maior flexibilidade em relação à presença física, que só é exigida quando realmente necessária”, explica Chelala, da Deusto. Para ele, “a produção se impõe sobre o horário”, e esse é um desafio que as empresas estão enfrentando. Por exemplo, graças a essas plataformas, os estudantes têm mais facilidade para trabalhar em suas horas livres, sem esquecer transformações mais profundas, como novas medidas de conciliação e, inclusive, o impacto ecológico das atividades empresariais. É o que pensa também Raúl Rojas, do Ecija: “A necessidade tradicional de mão de obra em troca de uma jornada fixa e de um salário fixo, independentemente da necessidade real ou da própria contribuição do trabalhador, está mudando.” De alguma forma, a tecnologia permite que uma empresa cubra suas necessidades e, ao mesmo tempo, um profissional pode contribuir com sua experiência para várias empresas em função de sua disponibilidade.

Contudo, adaptar-se a esse modelo não só consiste em um desafio para as empresas, mas também para os próprios trabalhadores. “Para os nativos digitais, isso não será problema, mas os profissionais de perfil mais tradicional terão de se atualizar”, observa Rojas, que conclui de forma contundente: “Os trabalhadores que não se adaptarem rapidamente a essas mudanças ficarão obsoletos e sem possibilidade de satisfazer às novas demandas exigidas pelo mercado de trabalho do século 21.” Ricardo Pérez, da IE, diz qual é o segredo para sobreviver nesse contexto muito mais competitivo. “Caminhamos em direção a uma economia com mais profissionais autônomos, portanto, cabe-nos buscar uma qualificação mais elevada nos campos de valor agregado, com especializações em áreas nas quais as empresas têm necessidades.” Ao mesmo tempo, porém, essa experiência serve para diferentes empresas, e não apenas para uma. Para Pérez, o futuro trabalhista da economia colaborativa não consiste em distribuir pacotes, mas em “trabalhar com números, ideias, softwares e soluções tecnológicas”.

Para Chelala, da Deusto, a parte positiva disso tudo é que “essas plataformas abrem um leque de oportunidades para se conseguir trabalho”, e embora o mercado esteja mais competitivo, também está mais estável. Além disso, para atrair bons profissionais, as próprias empresas “deverão tornar atraentes suas propostas diante das ofertas da concorrência”. Para ele, a flexibilidade e as condições econômicas serão as variáveis que os trabalhadores mais levarão em conta na hora de escolher entre um projeto e outro. Contudo, é difícil saber até onde irão as mudanças, porque estamos apenas no começo de tudo isso. Conforme disse Chelala, “ainda estamos na pré-história dessa revolução”.

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