Como uma empresa de mídia brasileira gerenciou sua transformação digital

De que maneira uma empresa tradicional de mídia pode continuar relevante na era digital? Para o Grupo RBS, um conglomerado de mídia que reúne jornais e estações de rádio e TV, a resposta foi abraçar a mudança em busca de oportunidades de prosperidade. Tulio Milman, jornalista do Grupo RBS, explica no artigo a seguir exatamente de que forma a sexagenária empresa mudou o curso da sua trajetória.

Pare de investir no veneno que está matando você. Essa frase levou a uma mudança de direção que transformou a RBS ─ um conglomerado brasileiro com receitas anuais de US$ 1 bilhão ─ em modelo para as empresas sul-americanas de mídia. O veneno é a tecnologia aplicada às plataformas de distribuição. Isso não significa que se deva abrir mão da inovação ou fingir que a indústria da comunicação não mudou radicalmente. A verdade é o oposto disso.

Sediada no estado do Rio do Grande do Sul, a RBS foi fundada quando Maurício Sirotsky Sobrinho, brasileiro de ascendência judaica (seus pais emigraram da Europa oriental), fixou um alto-falante em um poste de uma praça. Nos últimos 60 anos, a RBS cresceu e se tornou um dos principais grupos de mídia do Brasil. A empresa controla três jornais, cinco estações de rádio e 12 estações de TV que geram conteúdo local. O grupo transmite também o conteúdo da TV Globo no sul do país. A RBS também opera, cada vez mais, nas plataformas digitais. O Zero Hora, jornal do grupo, ocupa a primeira posição no Brasil na categoria de participação nas mídias sociais, com 23,3 milhões de visitas online mensalmente.

Assim como a maior parte das empresas de mídia, a RBS foi obrigada a passar pela curva de aprendizagem na era digital. Eduardo Sirotsky Melzer, de 45 anos, presidente da RBS e neto do fundador da empresa, lembra como a experiência ensinou à sua empresa a lidar com a disrupção digital. “É inútil lutar contra o mercado”, diz ele. Em primeiro lugar, era preciso enfrentar os dados brutais da analítica. Nos anos 90, o mercado das mídias tradicionais crescia 20% ao ano no Brasil ─ mas isso é coisa do passado. “Esse tempo ficou para trás e não deve voltar novamente num futuro próximo”, diz Melzer. A indústria de jornal impresso do país, por exemplo, viu seus gastos com anúncios nesse meio despencar de 28%, em 1995, para 16% em 2005, embora a RBS não tenha perdido seu público.

Como consequência disso, a liderança da RBS teve de tomar decisões difíceis, o que levou ao aumento da eficiência nas operações e vendas. Forçada a confrontar a realidade, a empresa se dedicou a refletir sobre a seguinte questão: “Onde estão as oportunidades?” E descobriu que mesmo em meio ao tumulto porque passa a indústria de mídia, havia oportunidades. O declínio das vendas de anúncios levou a uma mudança de direção: o jornalismo local apostou todas as suas fichas na assinatura digital como forma de sustentabilidade. Jornais e rádios antes ocupavam a ponta de lança dessa indústria com modelos de negócios baseados em propaganda. Contudo, em um cenário global competitivo, o modelo de distribuição migrou para as plataformas digitais, onde o conteúdo pago mostrou ser a única solução sustentável para o futuro.

O Zero Hora, o jornal do grupo, num esforço para fazer com que os leitores migrassem do meio impresso para o digital, introduziu uma revolucionária assinatura via tablet em 2015 que podia ser acessada em um aparelho da Samsung e permitia ao consumidor ler um jornal eletrônico moderno com duas edições diárias. Foi uma iniciativa bem-sucedida entre os leitores do meio impresso que valorizam muito a seleção de artigos. No período de pré-vendas, havia 5.000 leitores prontos para fazer a assinatura. Contudo, foi preciso interromper a campanha de assinatura logo depois da introdução do modelo devido à escassez do produto.

A fé na mudança para a assinatura digital chegou a um tal nível que os preços na indústria do jornal impresso cresceram 20%. A mudança da assinatura impressa para a digital tem sido bem-sucedida. A circulação digital vem crescendo 58% ao ano. “Estamos construindo um portfólio de produtos digitais que leva em conta o nível da adoção digital e a necessidade de curadoria ─ isto é, temos produtos para os nativos digitais, e temos outros que procuram simular o máximo possível a experiência da leitura impressa”, diz Andiara Petterle, vice-presidente sênior de produto e operações da RBS.

Recentemente, o grupo consolidou as operações comerciais de todas as propriedades de mídia. No passado, todas as unidades de negócios competiam por anúncios, cada uma delas tinha seu modelo próprio de agenciamento de anunciantes. Tal estratégia funcionou bem num mercado crescente e lucrativo. Hoje, as estações de rádio e de TV, jornais e operações digitais oferecem soluções consolidadas com foco integrado nas necessidades individuais no cliente.

Além de exigir uma mudança nos modelos de negócios, a nova realidade da transformação digital trouxe consigo alguns benefícios também. Um deles foi o fortalecimento do jornalismo livre e independente, cada vez mais distanciado dos interesses comerciais dos grandes anunciantes.

O futuro

Stuart Diamond, professor da Wharton, ganhador do prêmio Pulitzer de jornalismo e autor de Getting more, acredita que as empresas de mídia tradicionais têm apenas uma maneira para sobreviver e prosperar nesse novo ambiente de negócios: investir em conteúdo de alta qualidade. Ele discorda daqueles que preveem que as mídias tradicionais não sejam capazes de evoluir e de continuar relevantes: “Isso é uma coisa que não tem a ver com sua origem, mas com o desenvolvimento da sua visão atual.”

Nesse novo cenário, o que era uma desvantagem de escala se transformou em vantagem competitiva. Só a mídia local pode cobrir diariamente o que acontece nos domínios da cultura, economia, tráfego das ruas e nos clubes locais de futebol. Os resultados das partidas hoje se transformaram em commodity; o que realmente atrai o público é o que se passa nos vestiários, o sentimento dos jogadores, a análise tática e as projeções.

É o que pensa também Nelson Mattos, consultor independente do Vale do Silício. Ele foi anteriormente vice-presidente de produto e engenharia do Google para a Europa e mercados emergentes, e vice-presidente de informações e de tecnologias do usuário da IBM. “O Facebook e o Google não foram bem-sucedidos até agora na interação com conteúdo social relevante. Esse é o seu principal desafio no futuro próximo.”

Mattos, membro da diretoria da Hands, empresa da RBS especializada em publicidade móvel, acredita que a transformação digital já é um produto amadurecido para as empresas de mídia. “É lugar comum que a transformação digital esteja ganhando velocidade em praticamente todos os aspectos da nossa vida, da saúde à educação, mas haverá uma desaceleração na indústria de mídia por uma razão simples: ela foi a primeira a ser profundamente afetada.”

Diamond divide o tsunami digital em três ondas: transformacional, disruptiva e até desnecessária, porque “às vezes, leva mais tempo para um garçom fazer um pedido num aparelho do que se lembrar dele ou anotá-lo em um pedaço de papel”. Essas ondas digitais atingiram profundamente a indústria. Melzer se lembra de como impactaram a RBS. “Nossa reação foi de investir imediatamente nos mesmos setores em que Google e Facebook estavam crescendo. Contudo, essas empresas têm escala global. Foi uma batalha perdida. O desafio era deixar para trás a batalha com um mínimo de perdas e tirar proveito das lições que havíamos aprendido.”

A RBS decidiu vender seus guias locais e suas operações online de anúncios classificados. “Esses são processos conjuntos associados atualmente a um raciocínio lógico que não tem relação alguma com as empresas regionais”, diz Melzer. “Depois de alguns milhões de dólares investidos com poucos resultados tangíveis, era hora de aprender uma lição: em vez de fazer uma aposta impossível, deveríamos nos concentrar em habilidades. Na verdade, estávamos voltando ao elemento básico da empresa com a firme convicção de que não estávamos atravessando uma revolução tecnológica. Tratava-se, antes, de uma revolução social. As pessoas queriam ser ouvidas ─ essa é a inspiração real e a força propulsora por trás de todas essas mudanças.”

Em mais de 60 anos de história, a RBS acumulou know-how suficiente para gerenciar operações, logística e construção de marca, além de desenvolver uma boa marca e uma vasta rede em várias áreas do país. Para que possa prosperar novamente, a empresa deve usar seu know-how em áreas novas e rentáveis. Nesse contexto, a RBS fundou a e.Bricks e se dedicou à construção de empresas digitais nativas. Um exemplo bem-sucedido é a Wine.com, sem dúvida a maior distribuidora de vinhos da América Latina a oferecer compras e assinaturas online. Em 2014, a empresa teve ganhos de US$ 18 milhões. A previsão para este ano é de US$ 151 milhões.

Uma combinação estranha?

O que tem a ver vinhos e mídia? E por que não? Fazem parte do know-how da RBS a construção de marca, curadoria, gestão e, principalmente, know-how logístico acumulado graças à distribuição diária de 200.000 jornais em uma área geográfica mais do que duas maior do que a Pensilvânia. Hoje, a RBS Mídia e o e.Bricks podem parecer mundos à parte ─ na verdade, porém, não são. A primeira tem sua sede em Porto Alegre, no sul do Brasil; a segunda, em São Paulo, potência econômica da América Latina. Apesar da distância geográfica de 1.200 km, as duas empresas se dedicam às mesmas habilidades e valores. Essas habilidades levaram a e.Bricks a outro nível. Atualmente, a empresa está dividida em duas áreas: EB Capital ─ centrada em investimentos e no mercado intermediário, e a e.Bricks Ventures ─ que investe em start-ups iniciantes.

Ao mesmo tempo, nossa fé no jornalismo prossegue inabalável. Há um mês, lançamos um novo produto: a consolidação digital das plataformas de jornal e rádio, que agora operam com base no mesmo produto online, conservando ao mesmo tempo o formato tradicional de distribuição ─ papel e rádio ao vivo. Essa é nossa resposta ao mercado: seguimos na direção que ele nos mostrou, e não ao contrário.

A RBS viu que era hora de voltar ao básico. Só que o básico agora é digital, um polo de informações, troca de ideias e transformação para 12 milhões de pessoas no Rio Grande do Sul, sede da RBS. “Era hora de deixar para trás a rotina dos negócios tradicionais e introduzir um processo de confiança e de contato horizontal com a comunidade”, diz Melzer.

Nessa espécie de corrida do ouro digital, uma coisa é certa: a mudança é a única opção. Jack Welch, ex-CEO da GE, disse certa vez que quando a mudança externa é mais rápida do que a mudança interna, o fim está próximo. É crer nisso ou desaparecer.

Início.

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